Sonhei que a terra me engolia vivo

Yan Sales
4 min readFeb 4, 2022

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Ele nos contou de um pesadelo esquisito. A terra o engolia vivo, em poucas mastigações, era o chão daquela pracinha, do ponto final do ônibus que vai para a Candelária, a pracinha que a gente costumava parar para descansar depois do trabalho, tomar umas e esquecer por alguns minutos o dia seguinte. A terra o engolia feito uma jiboia com um bezerrinho, mas o dinheiro ficava, o bolinho de cinquenta e de cem escapuliu do bolso de trás e permaneceu intacto sobre a terra batida da praça. Isso tudo ele nos contou logo depois de acordar, com cara assustada, como quem acreditou no que sonhou. A gente disse que era nada mais que um sonho, que a terra não há mais de fazer mal a ele, estávamos numa terra nova, aqui é o Brasil, é uma mãe, a gente afirmou em coro.

Concordávamos que andar sozinho por aqui parecia um problema antigo. Desde que chegamos ao Brasil, temos reparado na naturalidade de quem vai e vem em olhar para os lados a cada poucos segundos como se carregasse algo valioso nos bolso; fato é que carregavam mesmo, carteiras e celulares, os alvos preferidos preferidos dos batedores profissionais e oportunistas. Nos primeiros dias ele achou preocupante a forma como as pessoas se olhavam e, principalmente, a forma como ele era olhado. E isso era verdade, a gente sabia que não era paranoia dele, a gente passava pelo mesmo desfile de olhares como de quem estuda uma presa, ou sei lá, é como nós passamos a descrever o olhar dos cariocas onde quer que a gente passe, seja qual for a roupa que a gente use. Mas é claro, mesmo com tudo isso o sentido de alerta tende a se afrouxar, até porque nada demais aconteceu nos primeiros dias, além de duas abordagens policiais com direito a revista e interrogatório: “qual o destino dos senhores?” A seta invisível de suspeito afrouxa mas ficava ali, oculta, ou simplesmente fingíamos não ver para não pirar de vez e afastar aquilo que era medo, mas sempre nos preocupamos em dar algum nome mais bonito desde que começamos uma vida nova por aqui, deixando o Congo para trás. A gente preferiu dar uma nova perspectiva aos nossos próprios sentimentos, isso eu vi no olhar de cada um: “terra nova, vida nova” era como eu traduziria a forma como a gente encarava o desafio de embarcar num trem fora da estação, no meio do trajeto, a toda velocidade.

Havia motivo de sobra para carregar um sorriso monumental no rosto, apesar de cada pesar: deixamos o Congo, com sorte acompanhados, todo mundo da mesma aldeia. Pegamos um navio que parou em três cantos do litoral antes do desembarcarmos no Rio. Ele não gostava de falar disso e eu entendia. Mas era tudo passado, a terra natal era passado, a fome era passado, assim como a guerra, o prejuízo, as invasões, os confiscos e as perdas. No fundo das expectativas jazia uma tímida esperança de dias melhores, filiada às oportunidade que todo mundo dizia morar no Rio de Janeiro; e era o que o samba sugeria por meio da cor e da dor vívidos naquele som, era o que as praias cobiçadas sugeriam. “O brasil é uma mãe, nossa segunda casa”.

Chamar a terra que pisa — e que é capaz de te engolir em pesadelos — de mãe era um tanto irônico para ele, cabisbaixo e reticente. Em certos momentos era até contraditório, mas até o fim de tudo, apelidar a terra de tal forma seria equivocado.

A gente achava que, por conta do trauma pelas experiências da terra de onde viemos, nos forçamos a manter cabreiros, com o pé atrás o tempo todo, desconfiado feito um sentinela de fronteira. Desconfiados a ponto de abandonar a ideia de zanzar pelas ruas da Barra da Tijuca sozinhos. Ele não era de ferro, talvez ele não soubesse disso, mas ainda assim eu via algum medo nele, tanto é que nos esperava passar pelo quiosque para sair do trabalho rumo à casa que dividíamos, isso por mais pacífico que parecesse ser a orla da Barra, principalmente se comparada às nossas terras, do outro lado daquela infinidade de água salgada.

Ele sempre ia além, sempre se preocupava menos, e nós começamos a nos lamentar sobre isso mais cedo do que esperávamos. Por outro lado, é de se entender a revolta. Deixar a terra era suportável; era aceitável abrir mão de qualquer dose diária de solidão, não se recomendava andar sozinho por aqui, há tempos não havia discussão sobre isso. Mas o vimos num extremo; suas rédeas se romperam e isso acontecia, normalmente, pela falta de compromisso para com ele, em especial por parte dos contratantes. Depois da guerra, da fome, da expropriação e de ter cruzado o oceano, ele não admitia ser passado para trás, ainda mais depois de ter dado duro em favor de dias melhores, em favor do faz-me-rir de cada dia.

Vai ver ele só queria ou só precisava de justiça, era isso o que buscava naquele dia, o da tragédia. Vai ver foi isso o que cobrou perante os patrões antes de lhe ceifarem uma vida inteira. Enfim, a terra o engoliu e não a terra que ele esperava, muito menos nós.

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