Carta à Anne

Yan Sales
2 min readFeb 13, 2022

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Sinto muito sua falta.

Devo começar deixando claro que nem fui capaz de classificar este texto; aparenta ser um mero desabafo, mas às vezes releio e identifico um pedido de socorro, acho que depende do meu humor. Encare como quiser essas confissões. Eu apenas fiz o que sempre faço e aportuguesei meus fantasmas.

Eu sinto falta da infância que você me transmitia e da imensurável leveza da sua inocência. Diante de tantos anseios, tantas ocupações e compromissos, minha adulta ingenuidade jamais imaginaria a falta que me faz contornar o sol com você, reorganizar as constelações e tingir a grama só nossa, com um verde só nosso.

Quando você estiver craque na leitura — e, principalmente na minha caligrafia — estará bem perto de conceber a síntese do que é a saudade que sinto de você, ou até mesmo vai saber que existe algo chamado autossaudade, pois as janelas e os hobbies não traem, são certeiros ao sinalizar o vazio que cresce aqui. Mas talvez não apenas a alfabetização te autorize a alcançar este desabafo dramático; até o ponto final eu decido se você um dia vai empunhar esta carta. É que talvez não seja adequado ou necessário. Meu último suspiro depois do arremate é quem vai dizer.

É que fisga o peito, maltrata no sentido sanguíneo da palavra essas descontinuidades que marcam presença no meu dia a dia. Os bons dias descontinuados, os aguardos pela sua saída na porta da escola, as refeições juntos e cada uma das broncas, suas e minhas. Nem eu mesmo creio nos projetos ousados para dar a mínima intermitência ao nosso desencontro. A saudade move o sozinho.

Queria recuperar na cabeça o timbre da sua gargalhada, renovar sua imagem que se altera a cada mês, mas continua a minha cara, eu sei, Mas se eu me presto a consignar minha angústia de irmão saudoso, é porque tenho fé na conspiração do Universo em favor de um cotidiano em que a gente se veja com mais frequência, em que diariamente sou importunado pelos seus trabalhos de casa confusos, pela curiosidade desenfreada, pela bagunça que você faz para se achar no espaço. Quero voltar a ter certeza da perfeição de ser distraído; é que só a sua dispersão me apresenta um espelho de vinte anos atrás e lá estou eu, minha cara, meus dentes e a minha flutuação por cima das obrigações.

A caminho do trabalho, enquanto escrevo esta carta, sigo olhando, como sempre, a janela do trem e não vejo nada. Acho que agora tenho um diagnóstico.

Espero que você me espere.

E se não for pedir muito, me entenda.

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