Apenas um dente da engrenagem

Yan Sales
2 min readDec 16, 2021

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Eu não vou mais ficar aqui esperando, encalquei este objetivo antes de me levantar do sofá rumo à chuva lá fora. Aproveitei o toró para dar um tom dramático; um tom dramático é sempre bom, ainda mais se você quer tornar algo memorável. De uns tempos para cá a vida andar tão chata, tão robótica que qualquer sentada no vaso, qualquer cuspida janela afora pode ser emoldurado para a posteridade. Mas de tanto titubear contemplando os pés sujos, o chiado da água sobre a telha de alumínio deu trégua, e eu fui assim mesmo.

Já na altura da primeira esquina, aquela com a principal, é que pude arriscar dizer que clarearam as ideias deste velho homem ao ver a moça da adolescência cruzando meu caminho, mas ela era jovem ainda, ah, óbvio, não era ela, mas só uma reprodução. Disse que seu nome era Musa e eu disse que isso não é nome; disse que ela tinha cara de Solange, ou Cátia, mas claro que não podia ser, eram nomes da minha época e ela parecia bem jovem, eu estava sedento por dar respostas a tudo e por quê, para quê; o universo fez o favor de conspirar para aquele encontro e não fixei postura tendente a absorver o aprendizado.

Só depois de um certo tempo me acometeu a verdade: olhava e não queria ver. Minha capacidade de criar tropeçava nas preconcepções armazenadas no meu cérebro de camponês medieval, só para evitar esforço e ter resposta pronta para o mundo em que todo agora é para ontem. O padrão se calcificou sobre o meu cotidiano e a poesia foi escorrendo plena, por entre meus dedos, olhos e ouvidos rumo ao ralo que é a vida ordinária. Este texto, quem sabe, com muita sorte, foi um dente da engrenagem que cedeu. Mas para minha tristeza e nostalgia, a máquina segue feroz.

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